Alexandre Delgado faz o grande balanço artístico do Cistermúsica 2014

Alexandre Delgado

O Cistermúsica 2014 arrancou com o pé direito: 600 pessoas foram ao Claustro do Rachadouro no dia 3 de julho (uma 5.ª feira à noite) para ouvir a Orquestra Sinfónica Portuguesa, num programa raro que incluiu Don Quixote de Strauss, Alexandre Herculano de Frederico de Freitas e Tamara de Balakirev, sob a direção exímia de Emil Tabakov e com uma magnífica interpretação de Irene Lima. No domingo anterior, 900 pessoas encheram o mesmo espaço para o espetáculo de final do ano da Academia de Música e Dança de Alcobaça; e no espetáculo de abertura, sábado 27 de junho, o êxito da coreografia de Daniel Cardoso e o profissionalismo do Quorum Ballet deram o mote para uma edição que teve como tema “Lendas e Heróis”. Refira-se ainda, no concerto da OSP, a elogiada qualidade da amplificação sonora (melhor que a do “Festival ao Largo” do Teatro Nacional de São Carlos, onde o mesmo programa foi ouvido nos dias seguintes) e as reações de agrado à projeção de legendas com o conteúdo programático de Don Quixote, uma inovação a manter.

Na segunda semana, Miguel Yisrael ilustrou com perícia o potencial do alaúde barroco, no primeiro recital desse instrumento no Cistermúsica, que atraiu bastante gente ao Mosteiro de Cós. No concerto da Banda Sinfónica de Alcobaça,no Claustro do Rachadouro – que por razões meteorológicas teve que ser adiado uma semana, o que não ajudou em termos de afluência – sobressaiu a estreia de Tágides de Eugénio Rodrigues, obra com um certo fôlego épico (instilado pelas musas camonianas), assim como Flashback to a Dream do açoriano Antero Ávila, obra descomplexada e cativante, uma boa aposta de Rui Carreira (maestro que, poucos dias depois, conquistou para a Banda Sinfónica de Alcobaça um prestigioso 4.º lugar no “Certamen Internacional de Bandas de Musica ‘Ciudad de Valencia’”). No domingo 6 de julho, o concerto do Quarteto Alfama encheu o Celeiro do Mosteiro e foi um dos programas que mais deleitaram os connoisseurs e melómanos da região (muitos deles estrangeiros): o grupo, primeiro vindo da Bélgica (com uma luso-descendente como 1.º violino, a magnífica Elsa de Lacerda), deu-nos exímias interpretações de Beethoven, Debussy, Webern e Britten.

A 3.ª semana ficou na história do festival. Na Nave Central do Mosteiro, foi inédito ouvir um requiem do tempo de D. Sebastião (com música de Afonso Perea Bernal, excelente autor descoberto por José Abreu na Biblioteca da Universidade de Coimbra), num concerto em que a Cappella Musical Cupertino de Miranda estreou ainda, com raro apuro, O LuceEtterna de Ivan Moody, obra de extraordinária beleza inspirada em Dante e uma das mais frutuosas encomendas feitas até hoje pelo Cistermúsica. No dia seguinte, António Rosado fez honra à sua reputação tocando a integral dos prelúdios de Debussy no deslumbrante Claustro D. Dinis (num recital cuja segunda parte sofreu, hélas, da poluição/amplificação sonora– não autorizada– vinda de uma das esplanadas à frente do Mosteiro).

Na 4.ª semana, três concertos do IncertusTrio levaram a outras tantas freguesias a elevada bitola do grupo júnior vencedor da 3.ª edição do CIMCA (Concurso Internacional de Música de Câmara “Cidade de Alcobaça”): três (belas) flautistas com uma média de idades de 17 anos (!) interpretaram um programa breve e cativante, que incluiu obras do húngaro Laszlo Zempléni (em vez do anunciado Shin’yaTakahashi, uma troca vantajosa), do dinamarquês Friedrich Kuhlau (de sonoridades deliciosamente pré-tchaikovskianas), do britânico Gordon Jacob (breve e eficaz) e do português António J. L. Ribeiro (LaLys, um extra especialmente oportuno no centenário do 1.ª Grande Guerra). A fraca comparência de público na bela igreja de Évora de Alcobaça foi compensada pela concorrida e entusiasta igreja de Pataias, mais do que pelo Forte de São Miguel Arcanjo na Nazaré (um espaço interessante mas sem grandes condições para concertos).

De regresso ao Mosteiro, sábado, 19 de julho, foi a noite NonStop deste ano (uma tradição que veio para ficar). Depois do profissionalismo do Fussion Percussion Duo, vindo de Alicante para a fabulosa acústica do Claustro D. Afonso VI, o português Pulsat Percussion Group circulou entre a Sala do Capítulo e o Claustro D. Dinis num concerto inesquecível. Um começo de chuva fez recear o pior mas,entre a retirada de armas e bagagens (que contou com a ajuda do público), o pianista e compositor alcobacense Daniel Bernardes protagonizou um milagre: o seu In Memoriam Bernardo Sassetti, a que se juntaram gradualmente os percussionistas do Pulsat Group, foi um dos mais vivificantes momentos de criação contemporânea da história do festival. No fim, Cage da Serra de Jorge Prendas causou o delírio com a sua hilariante mistura de galos de Barcelos, panelas, adufes e tamancas.

Num registo oposto (os contrastes extremos marcaram esta edição do festival), domingo, 20 de julho, foi a vez do americano Hopkinson Smith, considerado o maior alaudista vivo e responsável pelo renascer do alaúde desde os anos 60.Compensando a diminuta projeção sonora de um instrumento que não foi concebido para salas de concerto mas sim para os aposentos privados dos reis, a versão hopkinsoniana das suites para violoncelo de Bach fez falar a tiorba alemã na Sala do Capítulo.

A 5.ª e última semana começou com os vencedores ex-aequo do 15.º Concurso Internacional de Interpretação do Estoril: Gabriel Antão, atualmente solista da Orquestra Tonkünstler em Viena e trombonista de nível internacional, levou-nos ao céu com a sonata em fá menor de Telemann, a Sonata Vox Gabrieli de Stjepan Sulek (obra extraordinária, de fôlego neo-romântico) e os Quadros de uma Exposição de Mussorgski, eximiamente secundado pelo pianista Pedro Costa, que também teve oportunidade de brilhar a solo nas Valsas Nobres e Sentimentais de Ravel. O Museu do Vinho, que em boa hora foi reaberto, revelou-se um ótimo espaço para concertos e permitiu seguir o concerto de um jantar de gala magnificamente confecionado pelos alunos de gastronomia da Escola Profissional de Agricultura e Desenvolvimento Rural de Cister, êxito a repetir, que resultou de um dos muitos apoios, parcerias e inclusive patrocínios que contribuíram fortemente para esta edição do festival e mostram o enraizamento do Cistermúsica entre as forças vivas da região. O mesmo programa foi repetido no dia seguinte na Igreja de São Martinho do Porto, para um público numeroso e entusiasmado.

O património musical português brilhou no Concerto de Encerramento: a Ópera Il Mondo della Luna de Pedro António Avondano foi o repto em boa hora aceite pel’OsMúsicos do Tejo, obra-prima setecentista baseada num genial libreto de Goldoni. Com um elenco de primeira água, foi uma versão de concerto pujante de teatralidade, que levou ao rubro o Cine-Teatro de Alcobaça e mereceu uma crítica de quatro estrelas de Cristina Fernandes, no Público, a sugerir a reposição e circulação do espetáculo (a que gostaríamos de ver acrescentada a primeira gravação da obra em CD).

Alexandre Delgado
Direção Artística